domingo, 24 de fevereiro de 2008

40ª aula - 25 de Fevereiro de 2008


HISTÓRIA COM OS OLHOS FECHADOS

(conclusão)



- Essa é boa – estava sempre a dizer “Essa é boa!” – andas atrás de mim por toda a parte, e dizes-me que eu é que ando atrás de ti! Não é que eu não goste da tua companhia e de ir contigo quando vou, e tu também, ao Jardim Zoológico, ou ao cinema, mas a verdade é que também vamos a sítios sem interesse nenhum, como a escola e o dentista.

Depois deve ter pensado que eu podia ter ficado ofendido e acrescentou:

- Não te preocupes, digo isto por dizer. Eu não me importo, estou habituada. As sombras têm sempre pessoas atrás delas, e às vezes à frente delas. As pessoas sozinhas nem saberiam o que fazer, nem para onde ir. Dorme que já estamos cheios de sono.

Aquilo não fazia sentido nenhum. Mas tanto fazia, porque eu já devia estar a dormir (pensava eu, agora não estou tão seguro).

- Posso fazer-te outra pergunta?, disse eu.

- Podes. Mas depois apagas a luz, está bem?

- Para onde vão as sombras das pessoas, e das coisas, e dos móveis, dos livros, e de tudo, quando se apaga a luz?

- Que tolo!, disse ela. Ainda és de facto muito pequeno! Não vão para parte nenhuma! As pessoas e as coisas todas, quando é noite, ou quando se apaga a luz, é que voltam ao mundo das sombras e dos sonhos, que é aonde tudo pertence.

Explicou-me que as pessoas e os objectos são seres frágeis. Quando o Sol nasce, a luz pega neles e leva-os com ela para o seu feio mundo de paredes e de chãos, onde tudo vive e existe distinto e separado de tudo e onde as coisas não são outras coisas. Uma flor, por exemplo, é uma flor, e não é um pássaro, ou uma voz, nem um rio é outro rio, como no mundo das sombras e dos sonhos em que todas as coisas são todas as coisas – disse-me a sombra – tudo o que quiserem ser e não ser.

- As pessoas e as coisas – disse ela – são seres infelizes e nós, as sombras, acompanhamo-las porque elas precisam de nós para as guiarmos e as protegermos, levando-as pela mão como se fossem crianças pequenas. Só quando fecham os olhos (as pessoas fecham os olhos quando têm medo, para fugirem, porque fechando os olhos fogem para onde não há medo), ou então quando dormem, ou quando morrem, as pessoas são felizes. De noite, ou sonhando, estão a salvo do demónio da luz, que é um ser terrível, sem sombra. Sonham e são felizes, se o dia, com as suas maldições, não as afligir, e os pesadelos, enviados pela luz e pela razão, que é outro demónio, as não torturarem. Até que vem o dia outra vez.

A sombra falou-me de monstros que entram dentro das pessoas pelos olhos, quando eles estão abertos. E que comem as pessoas por dentro. Eu estava cheio de sono e não fui capaz de falar-lhe das coisas maravilhosas que também entram, de dia, pelos olhos, como as cores, o sorriso dos amigos, as folhas das árvores tocadas pelo vento, o rosto da mãe perto do nosso, antes de adormecermos. A minha sombra – pensei eu – podia ficar triste, porque as sombras não têm olhos.

Apaguei a luz e fiquei durante muito tempo a ouvi-la falar, no escuro, dentro de mim. Até que eu e ela adormecemos e dormimos o mesmo sono indistinto e profundo que todo o quarto, a casa, e lá fora o grande mundo, dormiam.

Sei que ninguém vai acreditar nisto. A mim próprio, agora, que é de dia outra vez, me custa a acreditar. Talvez digam que sou mentiroso, ou que foi tudo um sonho. E se calhar foi um sonho. Mas experimentem fechar os olhos!

Manuel António Pina, in A Antologia Diferente / De que são feitos os sonhos, Areal Editores



1 - A sombra falou de contraste entre o mundo da luz e o mundo da sombra.

1.1 – Indicar as expressões que caracterizam o «Mundo da luz (do Mal)» e o «Mundo da sombra (do sonho)»

2 – O narrador concordou com aquilo que a sombra disse sobre os perigos dos olhos abertos? Justificar a resposta.

3 – Em que parte do dia se passou a história vivida pelo narrador?

4 – Transcrever do texto uma expressão ou frase que justifique a resposta anterior.

5 – A história passa-se em dois locais diferentes. Quais são?

6 – Explicar por palavras próprias o significado do título do conto.



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