domingo, 5 de outubro de 2008

José Rodrigues Miguéis (1901-1980) escreveu um jornal de bordo onde fala das difíceis situações que viveu na sua condição de emigrante.

(Jornal de bordo – 1935)

Desta viagem no velho Arlanza até Sou’t’n vou guardar uma indelével memória. Deixo no cais o punhado de amigos que tenho, e que o tempo e a distância provavelmente irão reduzindo e esbatendo até ao esquecimento. Não vai comigo a bordo ninguém que me possa ajudar a atenuar, pelo convívio, a chaga dos problemas que me ficam no rasto, nem a solver o enigma que do outro lado do Atlântico me espera. A vida é uma cadeia de esfinges irrespondíveis, e é preciso correr ao longo delas, avançar sempre, acreditando que existe algures a solução… A solidão faz-me sofrer: atenua-a porém o interesse que me despertam os companheiros de viagem – talvez devesse antes dizer, de infortúnio. Com eles depressa esqueço, ou quase, o que me dói.

É preciso ter viajado num destes transatlânticos para se fazer uma ideia das fronteiras que separam os homens e as classes, mesmo dentro duma casca de noz. E somos poucos, aqui, não mais de cinquenta: que faria se fôssemos os duzentos ou quatrocentos da lotação, só Deus sabe, amontoados na imunda gafaria que é a terceira classe dos emigrantes.

O Arlanza regressa da América do Sul a Southampton, na Inglaterra, com escala na Madeira, em Lisboa, na Corunha e em Cherburgo, carregando no bojo mercenário um punhado de viajantes da casta de todas a mais triste: os de torna-viagem. Os que um dia distante partiram num porão, e, corridos anos, voltam à terra que lhes foi berço, no âmago dum sepulcro flutuante que um veterinário teria condenado como impróprio para o gado do açougue. Ao partir, levavam consigo ao menos uma esperança: agora nem isso lhes resta. Muitos deles, com o sonho, seu único luxo, perderam por lá a saúde e a força de trabalho que era toda a sua riqueza.

Com estes, os de torna-viagem, embarcaram na Madeira e agora comigo, em Lisboa, alguns portugueses que vão, como eu, à Inglaterra tomar o paquete para os Estados Unidos. Assim se juntam aqui, embora com destinos e em estados de alma opostos, duas correntes da mesma miséria: uma delas, ainda quente do sol da ilusão, parte para zonas mais temperadas e prósperas do Leste americano; a outra regressa lá do equador e do trópico, fria de desapontamento, esfarrapada e escrofulosa, para se dispersar por todos os cantos deste nosso mundo cristão e ocidental. Correntes humanas, num inquieto e perpétuo corropio em torno destoutro mar de sargaços, a vida.

Enquanto dura o sol da costa portuguesa, tudo vai bem: mas logo que passamos as alturas de Leixões, chove, está frio (em Julho!), e a maioria dos viajantes, vindos de climas mais benignos, alguns doentes, somem-se nas profundezas cavernosas do navio, onde reinam todos os cheiros inimigos do homem, entranhados em vinte anos de uso pelos dejectos da raça.

José Rodrigues Miguéis, Gente de Terceira Classe

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

6ª aula - 2 de Outubro de 2008


UM JOGO

Pronto, ganhámos, foi um belo jogo, trabalhado, suado, sofrido até mesmo ao último segundo, merecemos a alegria. Mas, caramba!, foi um jogo, não foi o resgate da pátria das garras do inimigo!

Que loucura é esta, que desvario é este que parece ter tomado conta de toda a gente? Que patriotismo é este que se sustenta das chuteiras de vinte e dois jogadores de futebol? Havia necessidade de se recorrer à linguagem tontamente bélica que por aí anda em cartazes? Aljubarrota?! (foi uma batalha, morreu gente!) A Padeira? (Matou à pazada uma data de fugitivos indefesos!)

E – cerejinha em cima do bolo – aquela escritora que foi à televisão aconselhar calminha aos ingleses, recordando-lhes que, enfim, quando se confrontaram connosco na Invencível Armada, «as coisas não lhes correram nada bem»…

Quer dizer: se a euforia futebolística ainda não chega para mudar o rumo à História, é bom lembrar que quem não se deu mesmo nada, nada bem nesse confronto fomos nós, nunca os ingleses que de lá saíram a cantar de galo…

Talvez não fosse mau, antes de mandarmos bitates, fazer uma revisão da História, já que a queremos usar como arma de arremesso.

Lembrar-me eu do que sofreu o pobre actor João Grosso aqui há uns anos por ter cometido a ousadia de, num espectáculo, utilizar o hino português noutro ritmo e noutra batida – e nos símbolos da Pátria ninguém tocava! Quando hoje vejo outro símbolo da Pátria andar por aí amarrado ao rabo, à cabeça, ao peito, aos braços de toda a gente, confesso que me sinto um pouco perplexa…

Mas enfim, quando daqui a dias a maluqueira passar, e todos regressarem à dura realidade que os espera, tenho fé que alguma coisa de positivo resulte de tudo isto: alguma auto-estima, e que, de uma vez por todas, tenham aprendido as palavras do Hino Nacional.

Alice Vieira, Pezinhos de Coentrada




 
http://www.dgidc.min-edu.pt/inovbasic/biblioteca/jornais/jornais-ler-fazer.doc