José Rodrigues Miguéis (1901-1980) escreveu um jornal de bordo onde fala das difíceis situações que viveu na sua condição de emigrante.
(Jornal de bordo – 1935)
Desta viagem no velho Arlanza até Sou’t’n vou guardar uma indelével memória. Deixo no cais o punhado de amigos que tenho, e que o tempo e a distância provavelmente irão reduzindo e esbatendo até ao esquecimento. Não vai comigo a bordo ninguém que me possa ajudar a atenuar, pelo convívio, a chaga dos problemas que me ficam no rasto, nem a solver o enigma que do outro lado do Atlântico me espera. A vida é uma cadeia de esfinges irrespondíveis, e é preciso correr ao longo delas, avançar sempre, acreditando que existe algures a solução… A solidão faz-me sofrer: atenua-a porém o interesse que me despertam os companheiros de viagem – talvez devesse antes dizer, de infortúnio. Com eles depressa esqueço, ou quase, o que me dói.
É preciso ter viajado num destes transatlânticos para se fazer uma ideia das fronteiras que separam os homens e as classes, mesmo dentro duma casca de noz. E somos poucos, aqui, não mais de cinquenta: que faria se fôssemos os duzentos ou quatrocentos da lotação, só Deus sabe, amontoados na imunda gafaria que é a terceira classe dos emigrantes.
O Arlanza regressa da América do Sul a Southampton, na Inglaterra, com escala na Madeira, em Lisboa, na Corunha e em Cherburgo, carregando no bojo mercenário um punhado de viajantes da casta de todas a mais triste: os de torna-viagem. Os que um dia distante partiram num porão, e, corridos anos, voltam à terra que lhes foi berço, no âmago dum sepulcro flutuante que um veterinário teria condenado como impróprio para o gado do açougue. Ao partir, levavam consigo ao menos uma esperança: agora nem isso lhes resta. Muitos deles, com o sonho, seu único luxo, perderam por lá a saúde e a força de trabalho que era toda a sua riqueza.
Com estes, os de torna-viagem, embarcaram na Madeira e agora comigo, em Lisboa, alguns portugueses que vão, como eu, à Inglaterra tomar o paquete para os Estados Unidos. Assim se juntam aqui, embora com destinos e em estados de alma opostos, duas correntes da mesma miséria: uma delas, ainda quente do sol da ilusão, parte para zonas mais temperadas e prósperas do Leste americano; a outra regressa lá do equador e do trópico, fria de desapontamento, esfarrapada e escrofulosa, para se dispersar por todos os cantos deste nosso mundo cristão e ocidental. Correntes humanas, num inquieto e perpétuo corropio em torno destoutro mar de sargaços, a vida.
Enquanto dura o sol da costa portuguesa, tudo vai bem: mas logo que passamos as alturas de Leixões, chove, está frio (em Julho!), e a maioria dos viajantes, vindos de climas mais benignos, alguns doentes, somem-se nas profundezas cavernosas do navio, onde reinam todos os cheiros inimigos do homem, entranhados em vinte anos de uso pelos dejectos da raça.
José Rodrigues Miguéis, Gente de Terceira Classe